domingo, 8 de novembro de 2009

O TRANSEXUAL E O DOUTORADO


Na verdade, Jaqueline nasceu Jaques Jesus. Há um mês virou, efetiva, assumida e psicologicamente Jaqueline — uma mulher transexual. O menino Jaques sempre foi delicadamente diferente. “Aos 6 anos, minha tia percebeu que eu não era como os outros meninos. Gostava de bonecas. Cheguei até a fazer casinhas de papelão pra elas, mesmo que não as tivesse por perto. Fingia que elas existiam e brincava assim mesmo. Não me identificava com nada de menino”, conta Jaqueline.Aos 12 anos, além da tia, do pai, da mãe, dos parentes mais próximos e até de alguns vizinhos, todos sabiam que o filho do operador de computador e da professora era “diferente”. “Delicado demais”, cochichavam alguns, à meia-boca. A palavra homossexual jamais fora pronunciada. “Com 12 anos, tive a minha primeira relação com um garoto. Foi quando descobri que realmente me sentia atraída por homens.” Jaqueline se tornou adolescente. Na escola — e fora dela —, sofreu toda sorte de preconceitos. “Os meninos me perseguiam, me agrediam verbalmente”, diz. Ainda assim, engolindo o choro, ela não tinha dúvida da sua orientação. “Aos poucos, fui construindo a minha identidade sexual e me vendo como um rapaz gay. O preconceito era duplo: além de negro, eu era gay.” O adolescente gay se tornou um homem gay. .Em 1997, aos 19 anos, começou a cursar psicologia. Em casa, porém, a homossexualidade de Jaques não era comentada. Assunto nunca dito. Palavra jamais pronunciada. O silêncio se fez respeito. Em 2000, aos 22 anos, mudou-se para o Plano Piloto. Foi morar com o primeiro companheiro. A relação durou 12 anos. “Ele terminou comigo assim que dei início ao meu processo de transformação. Disse que não saberia viver com uma mulher. Eu entendi. Sofri muito. Ficou a amizade.” Alguns transexuais optam pela cirurgia radical de mudança de sexo — procedimento reconhecido e autorizado pelo Sistema Único de Saúde. Não aceitam de forma alguma a genitália masculina. Em casos extremos, quando não recebem apoio psicológico e não conseguem operar, chegam à automutilação e ao suicídio. Jaqueline faz acompanhamento no HUB justamente para decidir se quer ou não a cirurgia. “Meu órgão genital não me causa repugnância. Operar é uma decisão que requer análise e maturidade. E nenhuma dúvida”, reflete a doutoranda da UnB. A luta agora é para conseguir mudar, na Justiça, o nome e, se possível, o gênero — feminino — nos novos documentos. “Juntarei os laudos médicos e darei para o meu advogado. O que fiz foi ajustar o meu corpo à minha identidade social”, explica. Com os olhos marejados, reconhece, ajeitando a aliança: “Consegui sair de dentro de mim mesma. Isso é renascimento”.No Instituto de Psicologia da UnB, a torcida pela aluna do doutorado é unânime. “Há muito tempo não via a Jaqueline. Na verdade, a última vez que a vi, ela era Jaques. Esse é um momento histórico para toda a academia. Alguém que assume essa transformação, não apenas no ambiente privado, tem uma atitude política, no sentido de dizer que é possível sermos diversos, com nossas opções, escolhas, orientações, seja qual o nome se queira dar. O ser humano tem que estar bem na pele dele — seja com saia ou calça. E precisa ser reconhecido e aceito assim na sociedade”, defende a professora de Jaqueline, Ângela Almeida.Ainda comovida com a nova aluna e tentando usar o pronome corretamente (“isso virá com o tempo”, explica), Ângela continua “Ele (ela) sempre foi brilhante e impertinente. Lutou pelo respeito e pela não homofobia”. Danielle Coenga, colega do mestrado, emenda: Para Sandra Studart, psicóloga e coordenadora do grupo de transexuais do HUB, a vitória de Jaqueline ajuda a sociedade a compreender melhor o universo dos transexuais: “Isso quebra o estigma da marginalidade, da prostituição e do subemprego que normalmente cerca essas pessoas”. Jaqueline é a primeira mulher transexual brasiliene a chegar ao doutorado na UnB.Se no ambiente de trabalho e na academia a aceitação foi normal, em casa não houve tanto espanto. É bem verdade que o pai preferia ter um filho homossexual a uma mulher transexual. “Ele acha que o preconceito seria menor.” Novamente o silêncio se fez respeito. o que Jaqueline quer mais? “Terminar meu doutorado, viver com o meu companheiro e lutar por todas as causas sociais e contra quaisquer formas de discriminação. É isso que sonhei a vida toda. Minha luta não será em vão.” Antes de qualquer coisa, esta é uma história feita de demasiada coragem.

Fonte Correio Braziliense

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